Muitas vezes nos pegamos pensando sobre o nosso modo de ser, estar e agir no mundo? Para James Hillman, isso nada mais é do que um ponto de vista (ou um ponto da vida) do “eu” (ego) sobre ele mesmo. E muitas vezes, esse ponto torna-se o todo. Julgamentos surgem: "está tudo errado"; "tudo o que eu faço é horrível"; "sou a pior pessoa do mundo"; "nada de bom acontece comigo", etc. Aquele ponto, ao tornar-se o todo, torna-se também autoritário e, por isso mesmo, acabamos acreditando veementemente nele.
Na psicologia profunda, sabemos que quando pensamentos totalitários e unilaterais desse tipo emergem, estamos lidando com os outros em nós: outras personalidades, complexos, etc. Por isso mesmo, é muito importante produzir a todo momento o solilóquio: o diálogo consigo mesmo.
A narrativa que damos ao "eu" é como o "eu" se percebe. E o "damos" está no plural pois os complexos também influenciam nessa narrativa. Vale lembrar que essa influência não é somente negativa ou destrutiva, pois, é nela que o "eu" se afirma e diferencia-se tornando-se mais si mesmo. Quando um complexo ou personalidade totalitária nos vem afirmar que "está tudo errado, nada funciona, etc.", não devemos comprar sua exclamação, mas compreender e dialogar com ela. "O que é tudo?" "Que 'nada' é esse"?
Se não promovermos esse diálogo dolorido, estacionaremos e seremos dominados pelos "tudos" e pelos "nadas". Por exemplo, C. G. Jung, fundador da psicologia analítica, nos afirma que o indivíduo quando está preso no complexo do salvador, sentindo-se superior, esconde em si o maior dos miseráveis, pois, a energia psíquica flui entre o tudo e o nada do complexo, num frenesi, sem dar autonomia para o ego.
A sociedade atual, titânica, pautada pela estética, pela performance, e pela meritocracia, excluindo o horror, o feio, o ineficaz, a preguiça, etc. faz muitos de nós sentirmo-nos inferiores, levando-nos até uma posição de vítima (inflada). Deveríamos, na verdade, abandonar esse padrões e torcer para as novas gerações superarem esse status quo.
A vítima aqui é diferente da ideia de “vítima de um assalto”, de uma violência, isto é, de um indivíduo que sofreu algo inesperado, um trauma, por exemplo. A ideia de vítima neste caso vem do autor Rene Girard: aquele que se sacrifica. Para o autor, existem dois tipos de vítima, opostos, mas para a psique, complementares. O primeiro é a vítima sacrificial (o bode expiatório), neste o grupo, a cidade ou a sociedade projeta todo o mal e toda a sombra; ele será expiado pois torna-se o portador da sombra. O segundo é o salvador divino, o melhor no grupo, a mais alta oferenda entregue aos deuses. Enquanto um é o excluído, o outro é o eleito divino.
Na psique, ambos se complementam, visto que C. G. Jung nos afirma que quando mostro-me superior, sinto-me inferior e vice-versa. Podemos depreender disso que, quem enxerga-se como vítima, inflada, busca incessantemente torna-se o presente divino, o escolhido, e acaba vivemos em prol do desprezo e da eleição.
Por isso mesmo, o solilóquio, o diálogo com minha vítima, é tão importante, a fim de despotencializar o "tudo e o nada" em mim. Sem isto fugiremos, como vítimas, de nossas responsabilidades enquanto sujeito, enquanto ego. Como diria C. G. Jung, é só suportando que superaremos o sofrimento.
Jung e Hillman ainda nos afirmam que é impossível sair da qualidade de vítima por meio de um pensamento causalista, isto é: "por que isso acontece comigo?". Devemos, no entanto, pensar de forma finalista: "para que isso acontece comigo?" e assim buscar o sentido (o caminho) a se seguir. Hillman no diz “pensar com o coração e raciocinar com a alma”. Se pudermos traduzir em uma palavra, seria "coragem". A courage é o “agir com o coração”.
Leonardo Torres, analista junguiano.
Revisão Glauciane Matos.
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