No conto, Dorothy é levada por um ciclone, juntamente com seu cão Totó e sua casa no interior do Kansas - lugar cinza e permeado de conflitos, até um mundo novo e mágico, vibrante em cores, chamado OZ. Entretanto, quando lá chega seu maior desejo é poder voltar para casa, o que foi lhe dito que somente OZ, um poderoso mago e regente, situado na Cidade das Esmeraldas, poderia tornar possível. E assim inicia sua busca por encontrar o poderoso mago.
O nome “Oz” tem origem hebraica e significa “força”. Além disso, OZ também é abreviatura da unidade de medida inglesa para massa equivalente a “uma onça”. Nesse sistema, quando usado para pesar objetos em geral uma onça (OZ) equivale a 28,34952 gramas, enquanto que quando utilizado para pesar metais preciosos, gemas e medicamentos, uma onça vale 31,103478 gramas. Pequenez que também sinaliza a separação entre o que é ordinário e valioso.
Em Lucas 6:38 podemos encontrar o seguinte versículo: “Dai, e ser-vos-á dado; boa medida, recalcada, sacudida e transbordando vos deitarão no regaço; porque com a mesma medida com que medis, vos medirão a vós.” Todos serão pesados e medidos a partir de sua força. A medida que entregamos ao mundo é aquela que o mundo nos entregará. Tal raciocínio, embora deveras utópico e quiçá em alguns níveis questionáveis, como por exemplo, correndo o risco de esbarrar em bobagens meritocráticas que ignoram de todo a realidade socioeconômica do indivíduo, tem em si um fundo de verdade, pois, se a realidade é dura (e o é para todos, de diferentes modos), certo também é que as lentes com que a vemos e interpretamos, bem como a maneira com a qual nadamos, a braçadas, por ela são significadores de força e transmutação. Essa lente, então, se revela, antes de um fator externo, muito mais um fator interno, como o exercício de um olhar mais bondoso, empático e indulgente com o meio.
A alquimia possuía duas buscas principais: a capacidade de transformar metais ordinários e pesados, como o ferro e o chumbo, em outros mais evoluídos, sendo o mais elevado, maleável e incorruptível, o ouro; e a busca por um elixir da longa vida, o qual seria capaz de curar qualquer doença. Aqui também a ideia de transmutação e cura se faz presente. Mas como encontramos ou criamos a pedra filosofal da nossa vida? Aquela que nos levará para algum lugar além do arco-íris? Certamente não se trata de uma tarefa módica em uma existência marcada a ferro e fogo. Mas todo o ouro (simbólico) pode e deve ser buscado, ainda que esteja oculto e aparentemente inacessível.
Não à toa, Dorothy deverá percorrer a “estrada de tijolos amarelos” até chegar a seu destino final. A propósito, “Dorothy”, a modalidade inglesa para o nome Dorothea, que por seu turno é a junção de “doron” (dádiva, dom) e theo(deus), significa “presente” de Deus ou “ouro para Deus”, e possui etimologicamente o mesmo significado que Theodora, apenas com os elementos invertidos. Também o nome Doroteu (doron + theos), foi adotado pelos judeus para substituir Natanael, possuindo o mesmo sentido. Mas a peregrina não percorrerá essa empreitada sozinha.
Dorothy conhece em seu percurso seus fiéis companheiros de viagem: um espantalho sem cérebro, um homem de lata sem coração e um leão sem coragem, que também buscam encontrar o Mágico de OZ, na esperança de que esse lhes dê, respetivamente, aquilo que lhes falta: um cérebro, um coração e a coragem necessários para cruzar a aspereza do mundo. Em um esforço interpretativo podemos ampliar o trio de cúmplices como significadores da mente, corpo e espírito; razão, emoção e vontade ou ainda pensamento, sentimento e ação volitiva. O racional, o emocional e a determinação que se dirigem a um objetivo nobre e maior: encontrar o que lhes falta. O que farão percorrendo o caminho dourado, o Golden Path, que também pode ser lido como o caminho do meio, a rota para a virtuosidade, concernente na relação estabelecida entre o Tao e o mundo.
Como nunca se está diante de unilateralidade, além de seus amigos, Dorothy também deverá enfrentar alguns desafios. Logo ao chegar em OZ, por meio do ciclone que aterrissa sua casa, a garota fica sabendo que ela havia caído em cima da Bruxa Má do Leste, matando-a. Quem lhe conta esse importante fato é a Bruxa do Norte, Glinda, que também lhe presenteia com os sapatos de rubi da feiticeira que morreu. A Bruxa Boa aconselha a menina a procurar pelo Mágico de Oz, o único que poderá lhe ajudar a encontrar o caminho de volta. Para isso, ela deve seguir a estrada de tijolos amarelos.
Detendo-se sobre os pontos cardeais referenciados podemos refletir sobre os planos horizontais e verticais da existência, conjugados nos planos materiais e imateriais. Nesse viés, temos ainda que “Aleph” (א) é o nome dado para a primeira letra do alfabeto dos idiomas semíticos (hebraico, fenício, aramaico, siríaco e árabe) e correspondente ao Alpha no idioma grego. Para os adeptos das doutrinas cabalísticas, o Aleph é interpretado como um símbolo místico e espiritual, responsável por representar “o começo de tudo”. A letra também pode representar a presença superior e celestial manifesta de Deus unido à realidade terrena pela humildade do corpo físico. O início, o fim e o meio, o passado o presente e o futuro. Também, na concepção de Borges, o Aleph é representado como o ponto do espaço onde todos os tempos se encontram e se desencontram, convergem e divergem dentro de si. Se pudéssemos entender a ideia de Aleph como a soma das bruxas, reconheceríamos neste símbolo a ideia de Self ou si-mesmo, de C. G. Jung. O Self, para o autor, é tanto o amigo quanto o inimigo dos heróis em suas jornadas. E é por meio das peripécias e resoluções colocadas por Ele que o indivíduo tonar-se herói.
Eis que, após, surge ainda a Bruxa Má do Oeste querendo saber quem matou sua irmã, a qual dificultará e muito o percurso. Quando conhece Dorothy, tenta recuperar os sapatos de rubi, mas a garota permanece firme dentro deles. O que nos lembra C. G. Jung quando afirma que a consciência possui pés vacilantes, mas são estes mesmos pés que nos levarão onde precisamos ir. Na antiguidade o rubi era conhecido como a pedra da felicidade e também significa “re-bis”, ou “coisa dupla”, palavra composta que deu origem ao rébus, enigma: o que sugere que o rubi esconda um sentido secreto, o da pedra filosofal. Também conhecido sob a designação de carbúnculo, que significa “carvão” ou “brasa incandescente”. Assim, o rubi procede simbolicamente do fogo. Rébis é também o primeiro humano para a Alquimia, aquele que possui uma matéria dupla (feminino e masculino). Daí podemos encontrar a ideia de rubedo, processo alquímico de integração dos opostos: luz e sombra, feminino e masculino, prata e ouro.
Em um de seus tratados alquímicos Tomaz de Aquino insinua: “Tome um crisol de ourives, passe-lhe gordura na parte interna e deite-lhe o nosso remédio, tudo a fogo lento; e quando o mercúrio começar a fumegar, jogue o remédio encerrado em cera virgem ou em papel, pegue um carvão grande, aceso, especialmente preparado para este fim, e ponha-o no fundo, deixando cozer em fogo violento; e quando tudo estiver liquefeito jogue em um tubo engordurado. Eis que assim terás Ouro e Prata finíssimos, segundo o fermento que tiveres empregado”. Mas qual o fermento que devemos empregar? Como encontrar cera virgem ou papel puro para tal receita? De todo modo, seriam os sapatos de rubi uma ferramenta valiosa na busca pelo ouro purificado.
Juntos, os cinco companheiros (cinco sim! Totó também é importante) vivem aventuras e chegam até a Cidade das Esmeraldas ou, ainda, a Cidade da Esperança. Eles pedem para ver o mago mas são impedidos. Entretanto, depois que Dorothy mostra os sapatos de rubi todos conseguem entrar, evocando o sentido daquele que porta a “chave” necessária. Lá, é dito que precisam trazer a vassoura da Bruxa Má do Oeste para que seus pedidos sejam atendidos. Bruxa essa que vem a ser derrotada pela menina por meio de um banho de água. Interessante perceber como esse outro elemento age na fábula. A água é tida como símbolo universal de rito de passagem e de purificação, estando presente em um dos momentos mais importantes do Cristianismo: o batismo. Por meio do mergulho nas águas profundas da consciência e inconsciência podemos encontrar nossa versão mais pura, dizimando a maldade e mácula em nós. Mas certamente se engana quem pensar que o batismo se dará apenas uma vez ao longo vida, pois, em meio às adversidades serão vários os rituais de morte e renascimento que precisaremos atravessar.
Curioso perceber que, muito embora se considerassem desprovidos de raciocínio, sentimento ou coragem, ao longo da trama nosso afável trio se revela, um a um, surpreendentemente arguto, amável e destemido, desvelando que essas qualidades sempre estiveram contidas em cada um deles. Talvez por isso que ao final descubram, ruindo suas ilusões, que o mago na verdade não possuía poder algum. Ao contrário, esse apenas os honra com um pergaminho, referenciando a sabedoria, um relógio em formato de coração, representando o amor, e uma medalha atestando a bravura e resiliência. Estes objetos são meros ornamentos que possuem o efeito de placebo. São validadores do que os companheiros encontraram dentro de suas almas no decorrer do caminho, confrontando suas sombras e medos e encontrando a iluminação.
Sendo assim, como então Dorothy retornaria para casa? Ela encontra-se novamente com Glinda que lhe diz que a garota sempre teve o poder de voltar para casa, mas precisava passar por todos esses apuros para confiar em sua capacidade. Então, depois de refletir sobre tudo o que viveu, a menina bate os tornozelos três vezes com os sapatinhos vermelhos, acordando em sua cama ao seu redor da família e amigos. E assim, ao fim nossa heroína retornou para casa, que, contudo, já não era a casa de antes. Por isso, não há lugar como a nossa casa quando a entendemos como a harmonia entre nosso corpo, mente e espírito, ou melhor, como a morada da alma. Sem esquecer que esse lugar é muito mais colorido quando permeado de amor, amizade, contentamento e esperança, transmutando o chumbo da densa realidade no ouro que nos falta.
Gabriela de Oliveira
Revisão: Leonardo Torres
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