Um Fundamento da Psicologia Analítica
Um dia o filósofo Arthur Schopenhauer estava andando por um jardim de Berlim refletindo sobre sua origem e seu destino.
Um guarda aproximou-se do filósofo e o interrogou: quem é você? Para onde está indo? Schopenhauer respondeu: eu não sei. Gostaria que alguém me dissesse.
Nesta incógnita existencialista posta pelo filósofo e imposta pelo guarda, podemos acrescentar a ideia de C. G. Jung, fundador da psicologia analítica, quando aponta que somos uma grande questão colocada no mundo e que cada ser deveria fornecer sua própria resposta.
Isto sem dúvidas é um grande complemento para a pergunta: o que é a psicologia analítica junguiana?
Diante de tal resposta idiossincrática proposta pelo autor, a humanidade tropeçou. Entendemos de alguma forma que esta resposta deveria ser lógica e única.
Dentro dos filhos de nossa época existe uma vontade encrustada de possuir coesão e coerência perante a si mesmo e sua história, isto é, ser uma unidade lógica inquebrável, inseparável e perfeita. Se levarmos essa ideia para a psicologia analítica, podemos substituir o termo unidade lógica por "eu".
Aquilo que chamamos de razão tenta dar conta da coesão de cada um, criando linearidades (começo, meio e fim) e causalidades (o porquê de tudo).
Muitos autores explicam que isso é uma herança exacerbada de um racionalismo caduco, mas prefiro o diagnóstico dos indígenas Pueblos: a atualidade vive em uma possessão da deusa razão.
Por isso, da mesma maneira que a deusa razão possui a mente humana, o "eu" acredita que é o único habitante, dono e rei da psique. Mal ele sabe que, assim como na Mitologia Grega (filogeneticamente) e até mesmo antes do "eu" aparecer na psique (ontogeneticamente), os seres em nós já travavam guerras, discussões e relações. Então, imagine agora que o "eu" resolveu tentar excluí-los?
Vale lembrar que nada mais une um grupo do que um inimigo em comum.
A palavra "razão" significa "dividir", porém, a razão fora tão exacerbada em nossa era que ela tornou-se um "excluir", "desprezar". Afinal, só seria possível ter uma coesão perfeita de si se o próprio indivíduo dividir-se ou racionalizar-se de maneira radical, ilusória e caduca, desconsiderando vários aspectos de si mesmo e encaixando, a la Frankstein, às escassas peças de um "eu" construído racionalmente.
Esta coesão perfeitamente construída parece límpida, porém, está em putrefação. C. G. Jung afirma que o processo de individuar-se – tornar-se quem se é –, é distinguir-se para integrar, pois não há integração sem divisão.
Se no processo acima descrito não há um distinguir-se, mas uma exclusão e desprezo de tudo o que não se quer conviver internamente, o "eu" torna-se cada vez mais rígido pois não quer fazer trocas, não quer confrontar e ser confrontado pelos outros internos.
Nada mais o enfraquece do que isso: a não troca.
Do ponto de vista egóico, quando o Monstro criado por Frankstein acorda (o eu ilusório e iludido), ele demanda de tanta atenção (energia) que é possível ainda aproximar esse processo do que James Hillman denomina de paranoia.
Há tanta atenção em ser a ilusão criada que é impossível não se tornar paranóico com o que o "eu" deveria ser, estar ou agir. Tudo isso leva ao enrijecimento do "eu".
Qualquer passo fora é inconcebível, inaceitável, não recomendado, perturbador e maléfico.
Se por um lado existe uma conotação negativa para a palavra "perturbado", há também: "per-" significando "estar acima"; e "turba" remetendo à "massa", ao "comum".
O que sugere que muitos indivíduos, considerados perturbados pela sociedade moralista e unilateral, podem ser exímios coletores dos pomos de ouro do inconsciente. Vamos à outra conotação negativa: o Perturbador poderia ser Lúcifer, o portador da luz; e Apocalipse, na tradução é Revelação.
Lembremos C. G. Jung, fundador da psicologia anaíltica, quando afirma que os pomos caem para todos, seja Schopenhauer ou um insano aprendiz de serralheiro. A diferença é que um deles sabe o que fazer com o fruto dos deuses.
Deixar o eu iludido e ilusório reinar cria um grande conflito entre ele e os outros da psique total. Afinal, estes últimos não foram excluídos pela infantilidade do "eu", mas se apresentam de modo compensatoriamente autoritário, já que o "eu" também porta-se assim diante deles (é muito comum hoje os cursos sobre como controlar as emoções, a mente, etc). Nesse momento, os deuses tornam-se doenças. Praticamente, os sintomas mais diversos emergem.
Estes outros, reconhecidos como espíritos pela cultura arcaicas ou como personalidades ou complexos pela psicologia profunda, são nossos companheiros de vida, professores e alunos, amados e amantes, odiados e odiadores, pai, mãe e filhos, etc.. São muito bem reconhecidos quando pensamos ou dizemos "eu estava fora de mim" ou "onde eu estava com a cabeça?" e mesmo assim cometemos atos inimagináveis (do ponto de vista do eu).
Via de regra, e compensatoriamente, quanto mais o "eu" unilateralizar-se, mais os sintomas se diversificarão. Quanto mais o "eu" impedir passagem pela consciência, mais inconsciente os outros estarão presentes em nossas vidas. Quanto mais o indivíduo abarcar a diversidade da vida, mais divertida ela ficará com os outros, mais consciência o indivíduo terá e menos sintomas aparecerão.
Em sociedade, existe uma versão coletiva desse "eu" iludido e ilusório: um movimento egocêntrico que perdura na humanidade e dita o modus vivendi e o ethos operandi – a forma de se viver e do ser e estar na sociedade. Individualismo, neoliberalismo, machismo, do it yourself, todos esses, tocam esse egocentrismo coletivo atual.
Existe também, portanto, sintomas sociais: Tânatos e o COVID; Vênus e as doenças venéreas; Pan e a síndrome do pânico; Ananke e a ansiedade; Porneia e a pornografia; Zeus e atitudes pueris; Hermes e as redes sociais; Hefesto e a tecnologia viciante; Titans e o consumismo desenfreado; entre outros que trazem à tona a sombra coletiva humana.
Poderíamos ainda dizer que esta é uma questão do arquétipo da persona. Certamente é, porém, seria a persona do "eu" diante do "eu", entubada com todas as regras, fórmulas, dicas, verdades, preconceitos que a sociedade imputa em cada um nós.
Nessas horas, deveríamos estar com o poeta: "viver não é preciso". Viver entubado pela sociedade não é necessário porque no viver não existe precisão. Controlar a vida é agir contra-o-rolar da vida.
Talvez aqui, então, não seja uma única resposta que devemos dar a questão de ser o que se é. Devemos fugir dos caminhos prontos, receitas perfeitas e condutas indubitáveis. Seria ir na contra-mão de todos autoritarismos, a fim de mergulhar em si, na alma, para reconhecer a imprecisão do ser múltiplo que se é. E reconhecer a numinosidade multifacetada de ser quem se é.
Leonardo Torres, 31 anos, psicoterapeuta junguiano
Agradecimento especial à revisão e comentários de Névia Rocha
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