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Foto do escritorLeonardo Torres

A Dúvida está Morta e os Anéis do Poder

Atualizado: há 1 dia

A deusa Dúvida está morta. Dúvida foi a deusa da hesitação, ela esteve presente quando encontrávamos bifurcações em nosso caminho; aparecia quando parávamos um pouco para refletir sobre uma frase de determinado autor; ou então, quando tentávamos entender as palavras do outro que incomodaram um pouco.

 

Sua morte não foi bonita, foi um assassínio. Primeiro, seu assassino a elegeu como algo ruim. Adjetivou-a de passiva, entrópica, covarde. Evidentemente, contagiados com seu líder e sem permitir que a Dúvida surgisse no coração, o ser humano aceitou, evidentemente, sem hesitar, que a Dúvida é má.



Foi assassinada a sangue frio. Guilhotinada, assim como os esclarecidos fizeram no passado. No segundo em que a cabeça da deusa Dúvida rolou, sendo separada de seu corpo pela mão de seu carrasco, o povo gritou, comemorou e se extasiou, gozando de um poder jamais visto.

 

O sangue da deusa escorreu pela guilhotina, manchando o solo da praça pública. Uma mancha que jamais se apagará, mas que ninguém liga, pois não há mais ninguém para hesitar no mundo. A partir daí, a multidão, eufórica, se dispersou, carregando consigo a “não-dúvida”. Voltaram, então, para os seus trabalhos, estudos e suas redes sociais.

 

A morte da Dúvida fez aquele vazio imenso desaparecer. Podia-se ouvir entre os cantos da cidade: “podemos ser felizes de novo!”

 

O mundo também mudou a partir desse assassinato. As encruzilhadas, antes repletas de possibilidades, tornaram-se caminhos únicos e estreitos. Fraqueza e covardia, sinais estereotipados da Dúvida, não existiram mais. Agora, sim, é possível subir a montanha sem se preocupar com a integridade física! A incerteza, que antes impulsionava a busca por conhecimento, foi vista como inimiga vencida.

 

Sem a deusa, o ser humano adentrou seu cotidiano extremamente feliz. No entanto, via-se no olhar de todos uma extrema dissociação cognitiva, um olhar único, direcionado e um sorriso estonteante. Quem olha de fora, poderia até considerar que a face exprimia um ar macabro. Essa felicidade é igual ao Anel de Gollum, uma obsessão que consome, que isola e que, no fim, destrói. Essa alegria revela a perda da alma. A deusa, outrora que conduzia para a alma, ou talvez até ela mesma fosse a alma, se foi; deixando para trás uma humanidade à deriva, agarrada a um simulacro de felicidade que a cega para a verdadeira miséria de sua condição.

 

Não é possível mais se perguntar: “esse anel me serve ou eu sirvo a esse anel?”. O assassinato da deusa Dúvida é o crime perfeito, pois ninguém mais duvida se foi destrutiva ou criativa a sua morte.

 

O carrasco da Dúvida não foi a Certeza, afinal a Certeza nunca desceu ao nosso planeta terreno com suas asas douradas. Foi outra: a deusa Reatividade. Tomando o poder, a Reatividade se vascularizou no coração de cada ser humano. Trouxe anéis de poder que ninguém hesitou em colocar. Afinal, é necessário usá-lo na mínima possibilidade de ressureição da Dúvida.

 

E assim o mundo seguiu.

 

Nas redes sociais, o ser humano e seu anel transformaram diálogos em fuzilamentos – ninguém mais lê e fica com a deusa Dúvida para refletir. Agora é diferente, o indivíduo lê para atacar, reagir e fazer a manutenção da sua certeza medíocre (lembremos, que a Certeza não está aqui), nada é absorvido ou comunicado.

 

Nos relacionamentos interpessoais, a empatia e a compreensão foram minadas, surgiu, então, a intolerância. O ser humano acaba por ficar pulando de relacionamento em relacionamento, de amizade em amizade, de time em time, afirmando que o parceiro é um narcisista, sem saber e aprofundar o que o termo “narcisista” quer dizer. Evidentemente, aqui não estou falando de casos extremos de violência. Estou me referindo ao comum.

 

No âmbito profissional, a Dúvida levou consigo a criatividade e a reflexão. A Reatividade elevou a produtividade e a eficiência. Agora, existe somente um caminho para crescer, evoluir e ter sucesso. O caminho do status é único, portanto, tornou-se comum aquele “puxar o tapete” para não deixar ninguém no caminho. Tem pessoas no meio do caminho, no meio do caminho tem pessoas. Pessoas são pedras a serem retiradas.

 

As universidades também não escaparam, nem mesmo o mundo junguiano. Antes espaço de construção do conhecimento e desenvolvimento do pensamento crítico, todos sucumbiram à tirania da Reatividade. Aqueles que se dizem intelectuais destes lugares, possuídos pela Reatividade, são os piores, pois eles promovem uma pseudo-dúvida – uma forma de manipular os outros para levá-los exatamente para as suas certezas medíocres e fazer a manutenção de sua vaidade acadêmica. A simbolização deixou de ser simbolização quando a Dúvida foi retirada de cena. Simbolizar agora é a grande fuga para o analista despejar sua interpretação projetiva sobre o cliente, fazendo de novo a manutenção de sua vaidade intelectual.

 

Ainda, nesse tópico, a busca por respostas prontas e soluções imediatas substituiu a investigação paciente e o questionamento constante. Tanto para se resolver uma patologia biológica quanto para interpretar um sonho ou uma mandala.

 

Cada um de nós espontaneamente evita encarar seus problemas, enquanto possível; não se deve mencioná-los, ou melhor ainda, nega-se sua existência. Queremos que nossa vida seja simples, segura e tranquila, e por isto os problemas são tabu. Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem entretanto, nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento. Assim, a negação artificial dos problemas não gera a convicção; pelo contrário, para obtermos certeza e claridade, precisamos de uma consciência mais ampla e superior. [OC 8/2, § 751]

 

Contudo, a Reatividade chega antes da consciência. O médico não olha mais nos olhos, o psicoterapeuta quer reagir, de antemão, à expressão da alma para confirmar sua superioridade, fazendo a alma fugir. Todos estão apaixonados pelos seus anéis do poder, dados pela deusa Reatividade.

 

A situação fica difícil, quando a natureza do paciente se rebela contra uma solução coletiva. Neste caso, coloca-se para o terapeuta a questão de saber se ele está disposto a quebrar suas convicções ao confrontar-se com a verdade do paciente. Se quiser prosseguir com o tratamento, deverá impreterivelmente, e sem nenhum preconceito, sair com o paciente à procura das ideias filosófico-religiosas correspondentes aos seus estados emocionais. Estes apresentam-se em forma de arquétipos, recém-brotados do mesmo solo materno em que, outrora, se formaram, sem exceção, todos os sistemas filosófico-religiosos. Mas se o terapeuta não estiver disposto a questionar suas próprias convicções, no interesse do paciente, é lícito pôr em dúvida a firmeza de sua atitude básica. É possível que não possa ceder por razões de segurança própria que, quando ameaçada, o faz enrijecer. Aliás, a capacidade de elasticidade psíquica tem limites que divergem de indivíduo para indivíduo e de coletividade para coletividade, e às vezes são tão estreitos, que uma certa rigidez significa o real limite dessa capacidade. Ultra posse nemo obligatur (Ninguém é obrigado além do que ele é capaz de fazer). [OC 16/1 §184]

 

O que não contavam é que a Dúvida, assim como São Denis, consegue levantar-se e caminhar mesmo sem a cabeça no lugar. Os ditos loucos nos ensinaram isso. Uma centelha, mesmo que fraca, ainda brilha em meio a essa escuridão abismal. Essa centelha, pode ser lida por Jung, mas não somente ele. Mas, aqui iremos com ele.

 

C. G. Jung entendia que a dúvida é uma força propulsora e necessária. A dúvida é o melhor caminho a se tomar diante do pleonasmo das certezas absolutas e da rigidez, nos mais variados âmbitos da vida. A psicologia junguiana defende o duvidar: dos pais, da sociedade, da política, dos movimentos, da profissão, da própria psicologia junguiana. Afinal, quando Jung afirma que a Consciência possui pés vacilantes, talvez ele não queira criticar, mas apontar que a Consciência deva realmente possuir pés vacilantes. Consciência e dúvida são irmãs gêmeas.

 

C. G. Jung não viajava para conhecer outras culturas. Visitava povos de distintas culturas exatamente para questionar sua própria cosmovisão cristã, europeia, caucasiana. Essa atitude aberta ao questionamento, segundo ele, é fundamental para romper com as amarras do ego e estabelecer uma relação o Self.

 

Dúvida e paciência não podem ser separadas, por isso, é necessário abordar essa segunda.

 

Jung também enfatizava a importância da paciência no processo de individuação. Ele reconhecia que a jornada de autoconhecimento era longa e desafiadora, repleta de obstáculos e retrocessos. A paciência, nesse contexto, era vista como uma virtude essencial para lidar com as frustrações, os conflitos e as incertezas que surgem ao longo do caminho.

 

É necessário ainda esclarecer os adjetivos pejorativos que foram imputados na Dúvida. Para Jung, Dúvida não significa passividade ou resignação, mas sim uma atitude ativa, de confiança no Self e de aceitação dos próprios limites. Hesitar é ter o dom da paciência.

 

Patientĭa, uma soma entre pathos e sciencia. Pathos é a raiz latina das palavras “paixão” e “sofrimento”, no sentido de “viver na pele”, “passar por algo”. A Paixão de Cristo é um grande exemplo disso. Já, Sciencia pode ser entendida como uma consciência de algo.  Portanto, "Paciência" é a tomada de consciência daquilo que atravessa o indivíduo; daquilo que ele está passando; ou daquilo que ele sente na pele. E isso demanda de tempo, isto é, da não-reatividade.

 

Assim como o alquimista, metafórica e pacientemente, transforma o chumbo em ouro, o indivíduo, com paciência, hesitação e dúvida, transforma suas experiências e conflitos em crescimento e amadurecimento. Qui patientiam non habet manum ab opere suspendat, traduzindo: “quem não tiver paciência, retire a mão da obra”.

 

Quem não suporta a dúvida não suporta a Si mesmo. Esta pessoa é indecisa, não cresce e por isso também não vive. A dúvida é sinal do mais forte e do mais fraco. O forte tem a dúvida, mas a dúvida possui fraco. Por isso o mais fraco está próximo do mais forte e quando pode dizer para sua dúvida "Eu te possuo" então ele é o mais forte. Mas ninguém pode dizer sim a sua dúvida, ele suporta então o caos aberto. Pelo fato de haver tantos abaixo de nós que podem dizer tudo, repara como vivem. O que um diz pode significar muito ou bem pouco. Pesquisa por isso sua vida. Meu discurso não é claro nem escuro, pois é o discurso de alguém em crescimento. [Jung, Liber Novus, p. 319]

 

A Dúvida brilha trepidantemente no mesmo lugar onde um dia a Alquimia brilhou com a ascensão do Cristianismo. Enquanto os anéis do poder dominarem nossos políticos, intelectuais e o homem comum, poucos encontrarão o ouro da alma. Torço para nenhum dedo, com seu anel, apertar o botão da bomba atômica a mando da Reatividade antes de tomarmos consciência.

 

Leonardo Torres, analista junguiano.



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