Uma das sabedorias mais profundas da humanidade tem sido deixada de lado: os mitos. Não é intenção deste artigo fazer qualquer apologia a uma religião ou outra, muito menos confrontar a mitologia com qualquer crença ou religiosidade. No fundo, estamos com Joseph Campbell que afirma que "mitologia é a religião do outro", ou seja, somos abertos a todo Mistério.
Dentre várias versões, em síntese: Psiquê é uma mortal que foi considerada tão bela quanto a própria deusa Afrodite. E por isso mesmo, cometendo hybris (quem se compara aos deuses), foi condenada a casar-se com a mais terrível das bestas de todos os mundos pela própria Afrodite, mãe de Eros.
Contudo, quando o filho de Afrodite vai flechar a mortal com suas setas do amor, ele acaba acidentalmente se ferindo em suas flechas e se apaixonando por Psiquê. Eros rapta Psiquê e impõe uma condição a mortal, o amor dos dois nunca poderá ser visto, nem por ela, nem por ninguém.
Convencida de que casou-se com um monstro, mas tendo todos prazeres e confortos que queria na mansão que então morava, Psiquê permanece ali, casada com Eros até que um dia sua curiosidade foi maior do que todo o resto. A mortal, após uma noite de amor, tenta iluminar Eros, dormindo na cama. Quando a jovem vê que casou com Eros, o deus do amor, espanta-se e deixa cair óleo do candeeiro no deus. Eros acorda e desesperado foge em meio aos braços de Psiquê.
Neste momento tanto o mundo de Psiquê quando o todo mundo foi abandonado pelo amor. Conforme o mito, não havia mais risadas espontâneas dos amigos, nem carinhos fraternos, amor materno e paterno haviam se esfriado, ninguém mais casava-se, nada fazia sentido. Este é o quadro depressivo que muitas vezes nos acomete, ficamos tristes, desanimados, entre outras coisas, seja por causa de um trabalho no qual não temos tesão exercer, seja por uma desilusão amorosa. O fato é que toda crise depressiva é um convite ao autoconhecimento. De-pressão é pressão para dentro de si, para os infernos, para descobrir, integrar e transformar algo de nós mesmos.
Psiquê, ao se ver sem Eros, vai pedir ajuda a Deméter, deusa da fertilidade, a grande mãe-terra, das sementes terrestres, que fermentam e nos dão vida e alimento. Mas Deméter afirma que não pode ajudar a mortal. Não é possível enfrentar um estado depressivo, de carência, de falta de sentido, por meio de uma compulsão alimentar ou alcoolista (fermentação). Não é o alimento ou o álcool que vai fazer atravessar a infernal situação que Psiquê se encontra.
Então Psiquê vai à Hera, irmã e esposa de Zeus, pedir-lhe ajudar para que o Amor volte. Hera, deusa da fidelidade, da tradição, das esposas, diz que não pode oferecer nada, já que Vênus/Afrodite também lhe é cara. Ou seja, também não é possível, somente submetendo-se à tradição, encontrar o amor. O amor, a paixão, muitas vezes, nasce em momentos de grandes subversões.
Psiquê, então, entende que deve ir ao encontro de Afrodite. Eis um paradoxo, mesmo ferida pelo amor, ela deve ir submeter-se a ele. Somente amor cura a ferida do amor? Desta vez, Psiquê deve submeter-se à deusa, que lhe passa 4 tarefas. Estas tarefas são caras para quem passa pelas crises depressivas com a de Psiquê.
1ª Tarefa: separar os grãos. Afrodite mostra a Psiquê um monte de sementes misturadas: milho, cevada, papoula, ervilha, lentilha, feijão e outras. E manda a mortal separa-los até antes de anoitecer. Apesar de parecer impossível, Psiquê, quase desistindo, recebe ajudar de formigas que terminam rapidamente a tarefa. Muitas vezes, em um estado de ansiedade, depressivo, ou até de raiva diante o que nos acontece gera uma enorme confusão. É necessário, a paciência e a constância laboral das formigas dentro de nós para separar os sentimentos, repensar neles e tentar ressignificar algumas coisas, o trabalho da terapia é um grande auxiliador deste processo.
2ª Tarefa: Conseguir lãs de ouro. Afrodite ordena que Psiquê pegue tufos de lã de ouro dos terríveis Carneiros do Sol, animais que nem Hércules chegava perto, devido a força de seus coices. Quando Psiquê recebe a missão, ela quase desiste novamente, até que um verde bambu vem em sua ajuda e a diz a mortal para esperar até o pôr-do-sol, assim os carneiros vão dormir. E ela pode apanhar com segurança fios de ouro que ficaram grudados por onde os animais passaram. A chave da tarefa é entender que o tempo é necessário. Muitas vezes, em uma crise, parece que ela nunca irá se findar, mas isso não é verdade. É necessário ser paciente e deixar a dor passar.
3ª Tarefa: Apanhar a água do rio Estige. Para isso, a mortal deveria passar pelos mais perigosos penhascos e enfrentar os mais temíveis animais. A água escolhida por Afrodite cai em forma de cascata de uma fonte no pico do mais alto da montanha íngreme até a mais infernal profundeza do mundo subterrâneo. Quando tudo parece acabado, Psiquê recebe ajuda da Águia de Zeus. Este animal, que dentro de nós busca um alvo com precisão em nós mesmos e toma a providência de trazer esperança novamente para continuar dura batalha contra o estado depressivo. Vale a pergunta: o que dentro de mim é águia que sobrevoa esta depressão e pode me tirar dela em um mergulho?
4ª Tarefa: A Caixa de Perséfone. Desta vez, Psiquê deve descer a Hades, ao mundo subterrâneo, para trazer a caixa da beleza de Perséfone. Desta vez, quem lhe dá o caminho para Hades é a Torre mais alta e mais longínqua. Um caminho que ninguém ainda passou. Quantas Torres, quantas construções de nós mesmos fazemos durante a vida? Algumas demolidas, outras reformadas, outras que são tão altas que podem até enxergar um caminho de saída. Mas, para entrar no mundo subterrâneo, Psiquê deve se alimentar pouco por lá, dar as moedas ao barqueiro Caronte e não se demorar. Afinal, quem desce às profundezas de si pode perde-se nelas. É curioso, mas o estado depressivo pode ser uma zona de conforto para muitos. Ser dominado pelas Sombras também. Por isso, não se pode alimentar-se muito delas, pagar o seu preço, fazer a oferenda e não demorar em não buscar uma fuga.
Desta vez, Psiquê consegue, ou quase. Ao ver a caixa de Perséfone nas mãos e sabendo que ela iria encontrar Eros, a mortal faz o que todos a pediram para ela não fazer: abrir a caixa para possuir a beleza divina. Neste momento, Psiquê transforma-se em pedra. Quantas vezes não queremos ser mais para o outro e acabamos por fingir. Tirando os inúmeros procedimentos de plástica, photoshop, entre outros que fazem com que prezemos mais por uma beleza padronizante do que pela construção de um amor de verdade.
Como um todo, Psiquê tenta desistir o tempo todo, assim quando uma crise depressiva nos acomete. Mas, ela encontra forças internas e externas para passar pelo seu inferno. Psiquê acaba ir ao submundo e se petrificar: é sim um símbolo da Morte. Contudo, a morte como metáfora é também renascimento. É neste momento que Eros intercede pela mortal e pede a Zeus para casar-se com ela. Assim Psiquê é levada ao Olímpo e casa-se com Eros. Deste amor, nasce Volúpia.
Somente os vínculos e o amor, seja ele paterno, materno, fraterno ou sexual, são capazes de nos sustentar, transgredir e transcender qualquer descida ao inferno. É inevitável a descida, pois isso é algo intrínseco à vida, mas é escolha nossa continuar a zelas e buscar pelo Amor, até que a Volúpia chegue.